quarta-feira, 3 de outubro de 2012

A lendária décima edição




Segue aqui um conto que escrevi para justificar o desaparecimento da decima edição do jornal "Ô, Xavante" . O jornal é publicado por um pessoal bacana (quem usa essa expressão ainda? Ah é, abri esse parêntese pra dizer que faço parte do jornal) do Instituto de Artes da Unicamp.
O site deles é esse: http://xavante.art.br/


A lendária décima edição

Para você leitor incauto, uma explicação e um aviso.
Caso não tenha reparado, a décima edição do famigerado Ô, Xavante jamais alcançou o público, tendo sido lançada a décima primeira edição após o lançamento da nona. Muitos boatos surgiram desse inexplicável erro de cronologia, afinal de contas poucos foram tolos o bastante para creditar tal gap a um erro editorial. A equipe é infalível.
Esta reportagem busca esclarecer, após infatigáveis explorações, pesquisas, entrevistas e cafés de sofrível qualidade preparados por garçonetes de caráter duvidoso, o mistério por trás do sumiço da décima edição. Tenha, porém, o aviso em mente: as linhas a seguir revelam verdades escabrosas, que talvez fizessem mais bem se mantidas em segredo. Porém, meu compromisso é com a verdade, e àqueles que temem pela segurança de suas vidas, famílias e bens imobiliários, parem de ler agora mesmo.
Vocês foram avisados.
Quando fui contratado pelo meu empregador, um jovem rapaz de roupas coloridas e que prefere ser mantido no anonimato, questionei-me sobre a importância que haveria no ocorrido. Minhas dúvidas desvaneceram-se ao verificar a quantidade excepcional de zeros contidos no papel que meu empregador me empurrou discretamente pela mesa do café onde nos encontramos. Veja bem, não é que eu precise de dinheiro para pagar os três meses de aluguel da pocilga na qual montei meu escritório de detetive, mas uma quantia tão substancial não poderia tratar de um assunto não menos que notoriamente relevante.
Comecei minhas investigações no Instituto de Artes, no qual o jornal/revista é produzido. Observei a vivencia dos alunos e consegui até me infiltrar em diversas reuniões da equipe, que, descuidada, realiza suas reuniões todas as segundas-feiras no horário do almoço, no lugar que chamam de Noya, a sala de informática do curso de Midialogia. Creio que poucos notaram minha presença, mesmo sendo claramente mais velho que eles.
Tendo obtido uma ideia geral do funcionamento do jornal, segui minhas pistas até um novo local. O teatro de arena, chamado por muitos alunos de Tchatcharena, era um local sombrio.  O leitor pode me perguntar que tipo de pista levaria um homem de bom-senso a me aprofundar nas cavernosas entranhas subterrâneas de tal lugar, e faz bem. O fato é que apesar da décima edição ter sido completamente produzida, seus textos angariados, diagramados, e todos os demais processos terem sido realizados, os membros da equipe se mostravam extremamente avessos a comentar sobre o porquê da edição não ter ido a público. Após incontáveis tentativas falhas de hipnose, arte em que sou humildemente um mestre, eu consegui encontrar apenas uma frase. Balbuciando entre choramingos de terror, um aluno me revelou: “... na toca dos leões”.
Seguindo os boatos que correm pela universidade, desci então, rompendo correntes e desviando de pregos enferrujados, no subterrâneo do desprotegido e perigoso teatro. Todos os meus anos de vida, percorrendo os mais sujos e macabros becos de cidades espalhadas pelo mundo, não poderiam me preparar para o que eu encontrei lá. O local parecia ter sido palco de uma chacina. Os equipamentos do que parecia ser um laboratório com sala de cirurgia encontravam-se todos ali, abandonados. As cortinas de plástico estavam banhadas num líquido amarronzado que só aqueles que trabalham no limiar da vida e da morte como eu saberiam do que se trata: sangue. Sangue velho e enegrecido. Um dos vários sinais de batalha que permeavam o local. As fichas médicas e o conteúdo dos frascos que não tinham sido destruídos indicavam que experiências terríveis haviam sido conduzidas lá. E, mais horrível ainda, tais experiências não haviam sido realizadas em nenhuma criatura de que eu tenha conhecimento. O ser era colossal, e segundo meus contatos no instituto de biologia, desconhecido dentre as formas de vida de nosso planeta. Relatos sobre seu metabolismo, semidestruídos indicavam uma possibilidade aterradora: o ser era alienígena.
Quando tentei voltar ao local fatídico, fui barrado. Homens disfarçados de estudantes a tocar uma rádio universitária de qualidade excepcional vigiavam as entradas. Percebi, porém, que a obra realizada na praça central da universidade não era o que parecia ser. Na calada da noite, os funcionários da construção entravam em um discreto, porém profundo, buraco na terra, e de lá removiam objetos encobertos. A forma destes objetos não me confundiu. Os homens removiam as provas do crime. Colocavam tudo em um caminhão e levavam de lá. Eu sabia que quando conseguisse descer novamente, não encontraria mais nada lá.
Minha esperança estava abalada e resolvi ir até o boteco mais próximo para tomar uma quantidade saudável de cerveja. Não lembro direito o que aconteceu nesta noite, mas de uma coisa lembro-me bem. Um homem de descendência filipina e aparência perturbada veio até mim. Ele sabia o que eu estava fazendo. Conversamos, e após um tempo, eu percebi que seu jeito desleixado nada mais era que uma fachada. O homem que me abordava ali era um homem inteligente, mas que sabia demais. Ele me contou sobre as experiências realizadas na época da ditadura. O monstro que aqueles homens queriam criar, a nave espacial que eles haviam descoberto, a construção do acelerador de partículas não muito longe dali. Tudo parecia saído de um conto barato de ficção cientifica, mas eu sabia que era verdade. Eu havia visto a verdade e agora minha vida corria perigo.
No dia seguinte, após a terceira água de coco, minha cabeça parecia voltar a funcionar. Eu levei o material que havia recolhido do antigo laboratório para um amigo meu da polícia. Ele recolheu os papéis importantes e me mandou embora. Aconselhou-me a esquecer de tudo isso. Eu havia cavado em lugar perigoso e se eu continuasse, certamente morreria no buraco que encontraria. Protestei raivosamente e ele me arrastou para fora. Antes de me expulsar por definitivo, olhou-me nos olhos e se apiedou. “Você não quer passar pelo mesmo que aqueles alunos passaram, e menos ainda pelo que aquele homem passou.” Ele me disse isso com dor no rosto.
Esperei que a delegacia fechasse e entrei nela, com a chave que havia roubado do casaco de meu amigo na confusão. Após uma noite longa demais, com um café ruim demais, encontrei o dossiê do caso. A maioria havia sido apagada. Black op. Sigilo absoluto, aquilo era mesmo coisa séria. Mas havia um nome, e nomes são fáceis de serem seguidos.
Curt Connors não me era um nome estranho, mas a memória é falha e dessa vez resolvi confiar na tecnologia. Uma pesquisa rápida me mostrou que o homem havia sido um cientista de renome. Suas publicações eram constantes e muito bem recebidas. Ele era um biólogo. Porém, a partir de uma época, não havia mais nada. O homem havia sumido. Tentei entrar em contato com familiares e colegas, mas nenhum deles quis falar a respeito. Alguns pareciam em choque, muito abalados para falarem. Outros diziam não se lembrarem de nada e não mostravam emoção alguma. Isso me deixou intrigado.
Utilizei-me novamente de minhas habilidades hipnóticas com um colega do doutor, na época anterior ao seu sumiço. Ele me contou sobre a convocatória de Connors pelo governo, de como ele parecia cada vez mais atormentado e preocupado. Contou como ele havia sumido e de como ele tentou averiguar o sumiço de seu colega. Então eu encontrei um bloqueio. Eu nunca havia visto isso acontecer durante uma sessão e só posso imaginar que tipo de lavagem mental o pobre homem deve ter sofrido. Era como se suas lembranças tivessem sido incineradas e sobrassem apenas as cinzas. O homem havia descoberto o que ocorrera ao seu amigo, mas também fora pego no processo. Antes disso, porem, conseguira escrever a verdade por trás de tudo que ocorrera e a entregou a um amigo próximo.
 Isso foi tudo que eu consegui. Nunca soube o que aconteceu ao doutor ou quem fora o amigo. Deduzo que este amigo tentou utilizar-se de diversos meios para que a verdade chegasse a público, inclusive enviando o texto de seu amigo para uma publicação séria e de renome como o Xavante.
Contei tudo ao meu empregador e ele me pagou o que havíamos combinado. Ele parecia triste com minha falta de provas e por isso espero que este texto chegue a suas mãos e que isso o anime um pouco. Estou de saída do país.
Uma última coisa chamou minha atenção, enquanto escrevo esse texto, sentado na sombra do ginásio da Unicamp. Um lagarto enorme tem me observado. Há algo em seu olhar que eu não sei bem explicar. E em um de seus olhos... Uma imperfeição, a mesma que havia no olho do doutor Connors. Não sei por que isso me perturba tanto, esse caso realmente me abalou.

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