Daqui de cima não dá pra ver nada
“Só
mais um salto”
Artur
sabia que não seria o último, mas não havia modo melhor de se convencer a
abandonar momentaneamente o medo que o dominava do que mentir descaradamente
para si mesmo. Ele sabia que tinha que pular. Pular, não se jogar. Por mais que
parecesse o segundo que o primeiro, ele sabia também como tinha que pensar. E
ele pulou.
Era
o décimo sexto pulo que Artur dava naquelas encostas montanhosas espinhentas e
frias. “Um pulo a mais do que tenho de idade”. De alguma forma esse pensamento
fez com que se sentisse mais otimista. A pedra que rolou debaixo do seu pé,
não.
Enquanto
caía pelo abismo das montanhas a vida de Artur passou diante de seus olhos. “Mas
que clichê” ele pensou. Não adiantou nada, a vida passou mesmo assim. Seus pais
que sempre o ensinaram a dar seu melhor, a estudar, ler, saber mais que os
outros. Seus colegas de escola que o ensinaram que ninguém gosta de quem sabe
mais que os outros. Seus professores que o ensinaram a como fingir que sabiam
mais que os outros.
Era
um filme chato de se assistir.
Artur
forçou sua mente a buscar as coisas boas. Ficou feliz em descobrir que dava
tempo de escolher que cenas iam passar na sua cabeça antes dela virar pudim no
chão lá embaixo. O primeiro beijo, desastrado, mas tão bom quanto esperava. O
bolo de laranja de sua vó. Seu cachorro, o Vader, sempre babando em tudo. Aquela
viagem escolar que começara tão besta mas que tinha virado uma aventura e
tanto. Como invocar uma águia gigante. “O que?”. Não importava. Ele se
concentrou naquele pedaço de informação estrangeira em sua cabeça e fez o que
tinha que fazer.
Nada.
Claro,
que besteira.
E
lá estava ele, caindo. Mas nem tanto agora. Meio de lado? Agora subia. Sua
mochila presa no bico da maior águia que ele já havia visto na vida. Não que
ele conseguisse ver ela inteira, era do tamanho de um avião daquele da primeira
guerra. Só que com um hálito muito pior. Artur fez o que qualquer bravo jovem
deve fazer numa hora dessas. Desmaiou.
Quando
acordou achou que estava morto. Claro. Caiu de um penhasco. Viu uma águia
gigante. Deve ter morrido. Um ultimo devaneio e bam! Fim da linha.
Mas
se estava morto estar morto era uma droga. Fazia frio e ele não conseguia ver
nada. Engatinhou pela pedra fria. Percebeu onde estava.
Lá
estava ele, no alto da montanha. Um corte no pico mais alto. Lá de cima só via
nuvens: devia ser bem alto. À sua volta, mais nuvens ainda. “Não dá pra ver
nada”. E agora? Seu cérebro ainda não tinha terminado de se acostumar com todo
o lance águia-gigante-carregando-pelo-bico. Tão pouco o fato de ele ter chamado
por ela. Chamou mesmo? E como fez isso? Ou melhor, como sabia fazer isso?
Foi
então que a coisa mais estranha aconteceu na vida de Artur. E veja bem, na vida
de alguém que já conseguiu montar um relógio de corda inteiro aos 8 anos de
idade, decorou a tabuada até a do 19 e finalmente, e quase tão impressionante
quanto, foi carregado pelo bico por uma águia com 15 metros de envergadura que
ele mesmo chamou com a mente, bem, não é qualquer coisa que podemos chamar de “mais
estranha”.
A
montanha falou com Artur.
No
começo Artur não fazia ideia de onde vinha aquela voz. Parecia que vinha de
toda parte e de dentro da cabeça dele ao mesmo tempo. E o mais estranho era que isso não parecia
tão estranho assim. Aí ele entendeu. Já tinha acontecido antes. Quando ele
simplesmente soube como chamar a águia. É, ele já tinha se acostumado com isso.
Era a mesma coisa. Como se a informação simplesmente entrasse na cabeça dele. O
que a voz dizia? Bom, você pode pensar e pensar sobre que tipo de coisas
fantásticas que uma montanha poderia falar para você. Não é estranho se você
pensar que montanhas são formações com idades geológicas, ou seja, um tanto
muito mas muito maior que a idade de todos seus avós e de todos os avós de
todos seus amigos juntos. Também, montanhas são imensas, podendo se estender
por vários quilômetros pros lados e até pra cima. Claro, você tem que deixar
pra lá o fato de que as montanhas raramente falam. Mas acho que já passamos do
ponto de pensar nessas coisas. Artur certamente já tinha passado. Ainda assim
era muito estranho uma montanha se interessar tanto assim por uma barra de
chocolate.
“O
que? Eu devo estar entendendo errado... você quer meu chocolate?”. Ela queria. “Hum...
ok. Como faço isso? É só enterrar?”. Artur raspou suas mãos nas rochas do topo
da montanha sem sucesso. Então ele soube de novo o que fazer, assim como no
caso da águia. Fechou os olhos e sentiu sua mão, com a barra de chocolate com
embalagem e tudo mais, entrarem na rocha fria. Puxou a mão pra fora e o
chocolate não estava mais lá.
Silêncio.
A
mente de Artur tinha parado. Não que ele estivesse desmaiado ou coisa assim. O
que aconteceu foi que a parte do cérebro que é responsável por dar sentido para
o mundo a nossa volta desistiu de suas funções, arrumou suas malas e foi curtir
umas férias no Caribe.
Aí
a montanha falou de novo. Parece que dessa vez ela estava pegando o jeito de
como um ser humano falo, pois as palavras apareceram inteiras na cabeça de
Artur, e não só como uma ideia como estava acontecendo desde então. “Obrigado.
Você poderia, por favor, empurrar essa pedra horrorosa daí de cima? É só jogar
lá embaixo, sim?”. Com certo esforço, Artur empurrou a pedra. Enquanto ouvia ela
rolar encosta abaixo a mente de Artur voltou do Caribe com um belo de um
bronzeado e a primeira coisa que fez foi perguntar pra ele porque ele estava
obedecendo uma montanha.
-
Ok, o que está acontecendo aqui? Como cheguei aqui em cima? Por que você fala?
-
Oras, isso não é muito educado de sua parte, é?
-
Desculpe mas é que quando você quase morre e aí acorda falando com uma
montanha, algumas coisa pequenas como educação não passam pela sua cabeça.
-
Educação é muito importante. Todo mundo sabe disso. Além do mais quem você acha
que te salvou?
-
Então foi você mesmo... Obrigado.
Por
incrível que parece, mesmo naquela situação, Artur estava constrangido. A mente
humana é algo incrível. E por incrível entenda: Capaz de se adaptar a
realidades muito estranhas e incomuns, até mesmo aquelas nas quais você pode
trocar uma ideia com uma montanha.
- Desculpe – disse Artur.
- Está desculpado jovem. Agora me
conte, o que anda rolando com o mundo? A última vez que tive companhia humana
já fazem uns cem ou duzentos anos. É fácil se perder em tão pouco tempo.
Artur
contou para a montanha sobre coisas como a escola, seus amigos, internet. Os
vídeos do Youtube prenderam a atenção da montanha por umas três horas, para o
desgosto e tédio de Artur, que preferia livros e quadrinhos de super-heróis.
- Besteira – disse a montanha –
Gatos e bebês são muito mais interessantes que homens voadores e sociedades de
seres fantásticos em uma busca tola qualquer pra destruir o que quer que seja
um anel.
Quando
Artur já estava quase se acostumando a conversar com a montanha, um pensamento
passou pela sua mente: “quão legal é ter um amigo que é uma montanha?”. A
resposta veio rápida: Não é. Aquela montanha era chata. Mesmo com todos aqueles
anos de vida (eras geológicas!), aquela montanha era no máximo sem graça.
Artur
se concentrou novamente na águia e em pouco tempo ela apareceu. Pousou na
montanha e se abaixou para que Artur subisse nela. “O que você está fazendo? Aonde
vai? O que acontece com o cachorro? Ele acorda?”. Artur ignorou a montanha,
subiu na águia e se mandou de lá o mais rápido que conseguiu.
Pousaram
perto do acampamento e Artur andou os últimos metros de volta até seus colegas.
Havia conhecido e conversado com uma montanha. Um ser colossal. E chato. Muito
chato.
Pelo
menos agora conseguia convocar uma águia gigante sempre que quisesse.
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